quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Café Flesh (1982), de Rinse Dream



“Able to exist, to sense... to feel everything – but pleasure. In a world destroyed, a mutant universe,
survivors break down to those who can and those who can’t.
99% are Sex Negatives. Call them erotic casualties. They want to make love, bur the mere touch of another makes them violently ill. The rest, the lucky one percent, are Sex Positives, those whose libidos escaped unscathed.
After the Nuclear Kiss, the Positives remain to love, to perform… And the others, well, we Negatives can only watch… can only come… to… CAFÉ FLESH…”


Café Flesh (1982), de Rinse Dream, principia com o texto acima, narrado por uma sensual voz feminina. É o bastante para delinear o “universo mutante” distópico por onde circula o apático e entristecido casal de protagonistas. Em brechas, o cenário é aprofundado no decorrer do filme. Trata-se de um estado autoritário que faz uso da coerção para impor uma estranha dinâmica sexual, na qual os Sex Positives são legalmente obrigados a fazer espetáculos de sexo explícito para plateias de Sex Negatives. Para aplicar a lei, uma polícia de cunho fascista vasculha o mundo à procura de Sex Positives ainda não incorporados aos espetáculos do Café Flesh. Uma vez forçados a fazer os espetáculos, os Positives são facilmente cooptáveis com a sedução da fama e da riqueza. São os únicos capazes de saciar os próprios desejos, e são incentivados a fazer isso.



O meio ambiente é degradado: não há cenas externas (as únicas locações do filme são o próprio Café Flesh e uma sala do apartamento dos protagonistas), mas é possível perceber uma chuva ácida incessante no lado de fora, castigando as janelas e se intrometendo com água e fumaça sempre que uma porta é aberta para o exterior. Alguns personagens carregam os efeitos do ambiente insalubre, como pele acinzentada e queimaduras purulentas. São marcas da “Terceira Guerra Mundial”, mencionada perifericamente, e do “Beijo Nuclear”, este também responsável por cindir a humanidade em Sex Positives – aqueles que conseguem fazer sexo e se excitar com o toque de alguém – e Sex Negatives – aqueles biologicamente incapacitados de sentir prazer com o sexo.


A narrativa é conduzida por Max Melodramatic (Andy Nichols), o mestre de cerimônias do Café Flesh. Sua intermissões, dirigidas tanto ao público ficcional quanto a quem assiste ao filme, sempre são seguidas por um espetáculo de sexo explícito no palco do bar. O personagem, contudo, tem uma participação maior no decorrer do enredo, e é dono de seus próprios conflitos. Na linguagem dissociativa, no uso de alegorias e nos aparatos cênicos bizarros, os espetáculos apresentados por Max trazem algo da arte performática como a contemporaneidade a enxerga.



Na primeira cena de sexo do filme, por exemplo, uma dona de casa a tricotar é surpreendida por um rato antropomórfico em trajes de leiteiro. No fundo do palco, homens em trajes de bebê brandem ossos com gestos agressivos. O rato vem para perturbar um cotidiano seguro e tedioso, incorporando aquilo que está sempre escondido (tanto o rato de esgoto quanto os desejos antes contidos da mulher) mas que se faz necessário para o bem estar. Como se a consumação dos desejos da solitária dona de casa fosse tão importante quanto sua própria nutrição, o leite que o rato traz. No palco do Café Flesh, eles fazem sexo por longos minutos, enquanto o público de Sex Negatives observa com luxúria e estupefação. E os bebês no fundo do palco seguem furiosos, batendo os ossos como que a pedir mais comida – a satisfação não se dá plenamente com a consumação dos desejos, pois a vontade continua a martelar, constante e inevitável.



Pela descrição da cena, é possível perceber que não se trata de um material estimulante, o que geralmente não é – ou não deveria ser – a tônica de um filme pornográfico. O prazer que os Negatives sentem é acompanhado de desconforto, porque nem se masturbar eles conseguem sem sentir dores terríveis. A edição enfatiza o ponto, interrompendo a performance no palco a todo momento para mostrar os espectadores em um prazer que também é dor – embora, é forçoso admitir, por vezes as inserções de imagens do público sirvam como meros cats in the window, a fim de corrigir ou disfarçar problemas de continuidade. Além disso, as cenas são bizarras o bastante para provocar um estranhamento genuíno.


Outra cena de sexo digna de nota é uma que principia com uma vagina sendo acariciada em detalhe, ocupando toda a tela. Ao lado, uma calcinha, aparentemente recém despida, com uma estampa da bandeira dos Estados Unidos. Soa um sirene de bombardeio e o barulho de explosões: é a guerra ao fundo. A cena é repleta de imagens relativas à guerra: sombras de morteiros, trajes militares nas mulheres e há bombas e armas espalhadas pelo palco. Ao invés de forçar uma relação entre o prazer e a violência, a performance mostra um desarranjo entre ambas: o prazer é colocado como algo capaz de esconder uma situação desagradável, cumprindo sua parte no velho esquema do “pão e circo”.


Café Flesh lida, nessa cena específica e como um todo, com uma temática manejada já por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo: a fim de conter o descontentamento para com a situação vigente, o Estado distópico distribui um prazer barato. Passa a ser uma função das forças repressoras fiscalizar se o povo está agindo como pedem os mecanismos compensatórios e garantir que estes funcionem de acordo.


Angel é uma personagem do filme que põe a instância em pauta: Positive, ela esconde sua condição por ter medo de perder a virgindade no palco. A força policial, os chamados enforcers, a rastreiam e obrigam a participar dos espetáculos do Café Flesh. A princípio, ela reage com horror, mas logo cede à vida de celebridade e à pretensa liberdade de fazer sexo para o deleite e a agonia dos Negativos.


O ritmo da narrativa é geralmente bastante lento nos filmes pornográficos, mas não é o caso de Café Flesh. Em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, Umberto Eco fala sobre como o gênero lida com o tempo na narrativa. Como ele observa, tudo o que não é ato sexual é narrado com elipses e saltos temporais; por outro lado, o sexo em si é mostrado em tempo real – ou seja, o tempo da narrativa equivale ao tempo cronológico. É o caso de Café Flesh, mas nele as cenas de sexo não se estendem ao ponto de despertar monotonia e de abolir qualquer parâmetro coerente de ritmo narrativo, o que é quase uma regra da produção XXX que se seguiu. As continuações tardias do filme (são duas, uma de 1997 e outra de 2003) servem de exemplo desse vício desenvolvido pelo gênero: se as cenas de sexo se estendem tediosamente por vinte ou até trinta minutos, é porque não parece haver de fato uma história a ser contada.


O casal de protagonistas vive um conflito insolúvel: Lana (a musa Michelle Bauer, ainda bastante jovem e atuando sob pseudônimo) é uma Positive, mas esconde isso de seu parceiro, Nick (Paul McGibboney). Enquanto para Nick os espetáculos do Café Flesh são cada vez mais frustrantes, Lana flerta com a tentação. Ela quer subir ao palco e participar, Positive que é. Não lhe cabe o papel de observadora, mas ela se coloca nele por amor a Nick. Fica nesse pêndulo, oscilando entre o amor e o desejo auto excludentes.




No texto introdutório do filme, a narradora diz “...bem, nós, os Negatives, podemos apenas observar... podemos apenas vir para o... CAFÉ FLESH”. Com “nós”, ela não parece dizer apenas “eu e os outros Negatives”, mas também “eu e você, os Negatives”. A impressão é reforçada durante o filme todo: sempre que há uma apresentação no palco do Café Flesh, a edição (a todo momento retornando às reações ao espetáculo) e os ângulos de câmera (comumente a reproduzir o ponto de vista do público) buscam colocar quem assiste ao filme no lugar dos espectadores do Café Flesh. O efeito resultante tem algo de perturbador: em simultâneo, no plano ficcional e no empírico, é duplamente reproduzida a fruição do material pornográfico, mas ela se vê acrescida de um viés crítico que acaba por colocá-la em suspenso.


2 comentários:

  1. Muito bom, Ramiro... invejo sincera e amigavelmente sua capacidade de clareza e síntese... (o Hermes De Luca sabe do que estou falando, rs) Não lembrava que o filme é tão politizado assim. Seu texto reforçou minha vontade de reassisti-lo. O chato foi ter me lembrado em detalhes do fim cabuloso, com nossa inevitável identificação com o Nick (vc trabalhou bem essa questão) diante daquela cena que poderia ser "legal" mas acaba sendo francamente depressiva. É engraçado, mas sua explanação me fez lembrar outro filme, onde o tema da violência ocupa lugar semelhante (na relação, como vc disse, com certo "viés crítico") ao do sexo em Café Flesh: Rollerball. O original, é claro, porque o remake eu fiz questão de não ver. É um filme, aliás, que eu queria muito ter visto na TV, ainda nos anos 80, mas só fui assistir mais de uma década depois. Outro clássico "sub"... (fica a dica pro seu blog, hehe) Vi que vc tbm gosta do Kurt Vonnegut, de quem já li quase tudo mas sobre quem não escrevi praticamente nada. Minto: tenho um ensaio, justamente sobre Breakfast, em avaliação. (Na verdade, acho que foi recusado...) Pra fechar, uma pergunta à queima-roupa: vc lê ou já leu Perry Rhodan? Isso eu confesso que nunca consegui ler, rs...

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    1. Ravel, dá pra fazer uma aproximação sim com Rollerball; é o mesmo tópico dos mecanismos compensatórios (que no fim das contas não compensam nada) que reaparece volta e meia na distopia. E concordo com você: o Café Flesh é realmente muito pra baixo.
      Li Perry Rhodan, mas aí a gente está no lado oposto do espectro; é uma noção de ficção científica completamente distinta da de Café Flesh, Rollerball, etc.

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