(Resenha escrita por ocasião do lançamento do livro, em 2012)
À antologia de contos de diversos
autores é demandada uma coesão algo frouxa, no que diz respeito à reunião de
diferentes formas de abordar um mesmo tema ou um mesmo gênero. Esse é o papel
que cabe a ela: pôr em cena distintas expressões literárias que se complementam
para fornecer um quadro amplo e heterogêneo. Já na coletânea de contos de um
único autor, a coesão a ser buscada é maior; embora cada conto seja, como na
antologia, autônomo em relação ao conjunto, predomina uma única expressão
literária, manifesta em tantas facetas quanto seu alcance permitir.
É o caso de O Grito do Sol Sobre a Cabeça, de Brontops Baruq. De um lado, há
traços recorrentes, que percorrem toda a coletânea; de outro, há a
multiplicidade formal que impede uma leitura automatizada. Uma das recorrências
é a filiação genérica à ficção científica; a coletânea se constitui por meio do
manejo dos paradigmas do gênero. A relação com o gênero não é superficial, ou
seja: não depende apenas do uso de imagens associadas ao gênero, como a
espaçonave e o alienígena, mas do efeito que a ficção científica pode provocar
no leitor.
Recorrendo a Darko Suvin,
sinteticamente se pode dizer que a ficção científica, por meio de uma
apresentação distanciada, pode promover uma articulação cognitiva, de cunho
crítico, da realidade aparente. Os parâmetros aqui adotados não parecem em
assonância com alguns dos dizeres da orelha do volume, assinada por Caio
Silveira Ramos: “‘Brontops’ não é um dinossauro, e equivoca-se quem o
classifica como autor de ficção científica: se em seus textos há ‘ficção
fantástica’, ele (ou alguém) se utiliza do rótulo ‘científica’ talvez para
atrair incautos fãs de Star Wars. No fundo, Brontops vale-se do universo
fantástico para expor sua desilusão sobre política, religião, moralidades e a
(des)necessidade de deus”.
De início, Ramos parece tomar
“ficção científica” como sinônimo de “ficção fantástica”. Embora
experimentemos, hoje, um momento em que as fronteiras entre diferentes gêneros
se revelam mais fluidas (com relação à ficção científica, à fantasia e ao
horror, elas sempre o foram em alguma medida), a crítica não deve simplesmente
ignorá-las: fazê-lo equivale a ignorar as particularidades da própria ficção de
gênero e de sua tradição. Esse é um problema menor, contudo, frente ao que é
proposto em seguida: que Brontops apenas usa o rótulo para atrair “incautos fãs
de Star Wars”.
A relação com a ficção científica
não se daria de forma remotamente significativa se a coletânea apenas se
filiasse ao gênero de forma enganosa, ao invés de retrabalhá-lo em seus
paradigmas constituintes. Ramos também parece tomar a ficção científica como
banal e escapista, ao propor que Brontops apenas usa um rótulo com o interesse
de, na verdade, “expor sua desilusão
sobre política, religião, moralidades e a (des)necessidade de deus”. Sugere que
é preciso escapar do gênero para dizer algo de profundo; aparentemente, foge à
sua percepção que a ficção científica oferece essa possibilidade, desde que
manipulada satisfatoriamente.
O texto da orelha parece repetir uma
estratégia que já fracassou em diversos momentos da historiografia da ficção
científica, da antologia Science Fiction
for People who Hate Science Fiction (1966), organizada por Terry Carr, ao
posicionamento crítico do emblemático autor da Geração GRD Fausto Cunha, que
oscilava do elogio à condenação da ficção científica no intuito de apresentá-la
a um contexto de recepção conservador – problema que a produção ficcional desse
autor, ao contrário da crítica, não deixa entrever.
Mas cuidemos dos contos que, afinal,
são o objeto desta resenha. Alguns deles, cujas particularidades podem
delimitar o teor da coletânea, foram escolhidos. Dos dezenove, oito serão brevemente
comentados, o que basta para fornecer uma noção geral da coletânea aos seus
potenciais leitores e para embasar futuras abordagens críticas dela.
O volume principia com o breve
“Extensão”. O texto é calcado no contraponto entre o familiar e o distanciado
que é característico da ficção científica, colocando em cena uma questão
recorrente na produção do gênero dos países à margem dos padrões hegemônicos de
desenvolvimento, a saber: o desenvolvimento tecnológico não pode sanar, por si
só, as mazelas do homem. Ao motivo recorrente, contudo, é acrescentada uma
visada irônica que particulariza o conto: o apego ao apuro técnico,
representado por um telefone celular ao qual o protagonista se agarra com todas
as forças, transfigura uma paisagem edênica em ambiente de desolação.
Os diálogos, entremeados por breves
marcações de perspectiva cambiante, predominam e constituem a narrativa de “{os
quereres}”, em uma aproximação formal do texto do teatro. Os detalhes acerca do
mundo futuro em que o conto é ambientado, assim, são fornecidos de passagem,
integrados ao diálogo. O enredo trata de um casal que planeja ter um filho e se
vê diante da opção de escolher como a criança será, do sexo à cor dos olhos.
Sem o interesse de investigar as intenções ou as influências de Baruq, é
possível observar que o elogio ao acaso e o tema do matrimônio no futuro, bem
como o contraponto entre o artificial e o natural socialmente construído
remetem ao conto “Um casamento perfeito”, de André Carneiro, publicado em sua
coletânea O Homem que Adivinhava.
“Zênite, nadir e drosófila” associa
o domínio exercido pela indústria cultural ao episódio bíblico de Abraão.
Neste, Deus pede a Abraão que sacrifique seu filho, e o pesaroso homem
providencia a execução. Uma voz grossa vinda dos céus, contudo, o interrompe no
momento derradeiro, dizendo tudo aquilo se tratar de um “teste de fé”.
Aprovado, Abraão e seus herdeiros recebem a recompensa divina. No conto de
Baruq, um homem tem seu filho selecionado para execução pública em um reality show. A cada ano, o programa
sorteia alguém para o sacrifício, e questionar suas regras está além do alcance
do pai – como as decisões de Deus, também as da mídia são soberanas e
inquestionáveis. Além de simuladamente extrapolar tendências em curso (os efeitos
nocivos da indústria cultural e a perda dos limites entre o público e o
privado, por exemplo), o conto volta um olhar irônico à obediência cega e
acrítica que, no episódio cristão, é louvável e digna de recompensas.
“Pausa” é o conto da coletânea mais
apegado à narrativa linear e, por assim dizer, tradicional. Cercado de contos
que experimentam de maneira mais ousada com a forma, acaba por funcionar de
fato como uma pausa. Possui teor aventuresco e, bem conduzido, é dotado da
agilidade que a narrativa de peripécias demanda. No enredo, ciborgues
guerrilheiros na fronteira mexicana, em um futuro não desejável.
“(Ficção especulativa)” toma como
tema a transfiguração estética da realidade, com teor metanarrativo. O enredo é
narrado em mais de uma instância, se ajustando às diferentes possibilidades
oferecidas ou exigidas por duas formas narrativas, o cinema e a literatura. Põe
em cena a expectativa do público, por vezes calcada em parâmetros estanques, e
o artista que se vê na obrigação de adequar sua arte a parâmetros
pré-estabelecidos.
“(História com desenho e diálogo)”
é, talvez, o conto mais bem sucedido da coletânea. Um resumo do enredo pode dar
a impressão de se tratar de uma história de invasão alienígena como tantas
outras, mas a forma, ao promover uma mudança de perspectiva, precisa ser levada
em conta. O conto é constituído de descrições de desenhos infantis entre
parênteses, seguidas de frases curtas com dicção também infantil explicando de
que se trata a ilustração. Dessa maneira, por meio do olhar da criança e de sua
peculiar expressão, são dados a conhecer a invasão alienígena e suas
consequências trágicas. O conto já foi publicado no exterior, evento raro em se
tratando de textos de ficção científica brasileira – um sinal de que seus
predicados já alcançaram algum reconhecimento.
“Buraco no céu ou 22 de dezembro de
2012” implicitamente elabora uma crítica (ou um questionamento) da religião e
do apego a ela. Trata-se de uma atípica história de fim de mundo, na qual
alienígenas visitam o planeta não com hostilidade, mas com reverência à raça
humana que consideram iluminada e sábia. Encarado como perfeito embora ciente
da própria imperfeição, o homem parece não ter mais em que se sustentar. A
recorrente incapacidade humana de caminhar pelas próprias pernas, relacionada à
necessidade da crença em algo superior, é assim posta em cena: desvendado que
não há nada acima, o homem tolamente não sabe mais como agir.
“Sésamo, bananas & kung fu”
guarda similaridades com o conto que abre a coletânea: carrega a noção de que o
avanço tecnológico não é sincrônico ao aumento de benefícios e do bem-estar do
homem. Extrapola simuladamente os problemas que adviriam do desenvolvimento da
tecnologia de teleporte e, como boa parte dos textos da coletânea, é avesso ao
otimismo e ao entusiasmo ingênuos a permear certa parcela da ficção científica.
Embora O Grito do Sol Sobre a Cabeça seja um bem sucedido volume de
estreia, não cabe dizer que se trate de um autor promissor; se houve promessa,
ela já foi cumprida. Baruq revela domínio nas mais diferentes formas narrativas
exploradas na coletânea; todas fluem com eficiência e são permeadas de
significativas entrelinhas a serem exploradas pelas vindouras (e, esperamos,
numerosas) abordagens críticas. O potencial da ficção científica, em seu efeito
de questionar cognitivamente a partir do distanciamento, é explorado de forma
plena. Manter os olhos na produção futura de Baruq será uma tarefa e um prazer
para os leitores e os críticos que se ocupam da produção literária brasileira,
de ficção científica ou não.
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